O texto trata de um assunto muito mitificado e explorado. O fato de sabermos ou não, quem somos. E melhor, propõe à nós, uma atitude contraria, ou pelo menos, invade o campo dessa possibilidade - O que aconteceria se parássemos de nos fazer essa pergunta?
Nesse texto, encontramos em vários momentos, as contradições existentes no já conhecido existencialismo. Levanta a questão de que o ato de tentarmos sempre nos conhecer, conhecer a essência, o íntimo, não passa de uma ilusão, logo, na verdade somos, tão somente, seres mutantes, em transformação constante e contínua, fazendo assim, com que pensemos mais ainda (pelo menos foi o meu caso) sobre o que realmente importa, se o auto-conhecimento tão almejado, ou a aceitação de que se é hoje, um esboço de amanhã.
Tenho cá para mim, minhas dúvidas e certezas a respeito de determinados tópicos abordados pelo autor nesse texto, duvidas e certezas essas minhas que irei comentar nessa resenha.
A respeito da comentada transcendência, entro na questão básica que, segundo o texto, define o que deve ou não ser transcendido, os nossos limites. E por isso e somente por isso que como Jean Claude disse, nós mesmos escolhemos o transcendente, nós o denominamos e ficamos assim, de certa forma, isentos de qualquer esforço para conhecer e/ou dominar essa área, agora restrita por escolha, consciente ou inconsciente, puramente nossa. Mas discordo quando é mencionado no texto, que o ato de forçar a porta, uma vez que esse terreno foi denominado como transcendente ou proibido, seja inútil. Acredito que, aos nossos limites, se encontra atrelado a nossa capacidade de superação, então, caso haja bom senso, coragem, disposição e perseverança, a porta, não só pode, como deve ser forçada e assim a transcendência ganha uma outra conotação, a de superação, de se atravessar um obstáculo, podendo ser ele cultural, social, religioso. E acreditando no fato de sermos realmente seres mutáveis, o que é transcendente pra mim hoje, pode ser o território conquistado de amanhã.
Quando o autor retrata essa transcendência, esse lado desconhecido com argumentos religiosos, não vou aqui defender ou acusar quaisquer crenças, religiões, doutrinas, dogmas, mas devo confessar que algo me chamou atenção na perspectiva de Carrière. Acredito sim que a fé possa mover montanhas, e acho também, que o ato de crer em algo, possa ser a mola propulsora para uma vida mais fácil. Digo fácil, pois, se você pode dividir um problema com alguém, ou uma alegria, até mesmo responsabilidade sobre algo de certo ou errado na sua vida, logicamente torna, a vida, um fardo menos pesado, mesmo que você divida esse fardo com um amigo, um desconhecido, uma entidade ou um santo. Mas o que aconteceria se essa mesma fé fervorosa, que se aplica aos altares, fosse devotada a nós mesmos? O que aconteceria se fossemos os nossos próprios Deuses? Em uma ocasião, em uma dessas conversas deliciosamente despretensiosas que temos com algum amigo durante nossas vidas, sobre assuntos soltos, porém brilhantemente relevantes, estava eu, com uma grande e sumida amiga, que me disse uma das frases mais simples e mais elucidativas que já conheci. Frase essa, que pela imensa sabedoria dessa amiga, pode ter saído de algum livro – Eu sou Deus em ação! Brilhante e simples, todos nós somos Deus em ação, o dedo de Deus que aponta, a mão de Deus que pune ou ajuda a levantar. E não estou aqui levantando bandeira de religião não, pois esse Deus mencionado, para mim tem um significado distinto do que no geral, varia de um para outro, pode ser para um uma grande força que rege tudo, pode ser o Deus católico, pode ser seu orixá, pode ser Buda, e pode, por que não, seu Eu. O que me lembra e remete a uma passagem do texto, em que Carrière fala que se há três deuses e eu acredito em um deles, os outros dois passam a não existir, ou serem falsos, pois não se pode coexistir três deuses verdadeiros. E eu pergunto, por que não? A passagem que cita, que os santos e deuses só são, só existem, por nossa causa, é ao mesmo tempo, assustadora para os que crêem – até mesmo pra mim que não tenho religião pré-definida, apesar da minha formação católica, chega a ser um tanto desconfortante – e também é clara como água, as coisas existem pois nós as vemos, as tocamos, as utilizamos para alguma finalidade, ou seja, se conseguimos contextualiza-las, comprova-las, torna-las práticas, aderi-las às nossas vidas, elas existem, é fato! Agora e quando não se toca, não se vê e não se prova cientificamente? O que lhe dá a existência é justamente a fé, a ação de acreditar as torna real.
Quando Carrière comenta que as religiões se encontram em declínio, outra vez encontramos uma sensação de concordância e de contrariedade, pois creio sim em uma época de unificação de deuses, de reflexões mais coletivas do que individuais, acho sim que haverá um tempo em que as religiões se fundirão, talvez assim, com esse ponto de vista, eu concorde com o autor quando ele menciona esse tal declínio, porém, não creio em uma comunidade sem o “comum”, em uma sociedade em que não sejam agregados os valores de um grupo, mesmo que religiosamente falando. Creio que a religião pode e até deve passar por modificações profundas, tirando dela o que não a pertence, a vaidade que rege determinadas ações e cultos religiosos, a ganância e ambição que corrompem e às vezes denigrem a própria imagem de sua própria igreja ou templo. A intolerância em geral para com a diversidade e diferenças. Afinal como disse anteriormente, em geral é necessário acreditar em algo e como já foi dito e repetido durante toda nossa existência, somos humanos e passiveis de erros. Como acreditar então em nós mesmos? Como confiar o nosso destino às nossas mãos, se somos tão falhos? Se erramos vamos pro inferno, então dividiremos toda a culpa dos nossos atos e ações à uma força externa, fica mais fácil pra mim, fica mais fácil pra todos. Como o próprio autor diz – Contanto que não me obriguem a acreditar, a fé não me atrapalha – Irônico, porém coerente.
Colocar a transcendência como algo inatingível e inalcançável é como nos colocar em posição de vítima, impuros não merecemos e não temos capacidade de conhecer o seu real significado e objetivo. Quando nos aproximamos de um mito e os humanizamos vemos assim, mais um mito ruir, dar por terra, e isso de forma alguma é ruim, muito pelo contrário, humanizar as pessoas, sentimentos e por que não os mitos, é algo que devemos buscar incansavelmente. Aproximar-nos do desconhecido, do místico, assim como acontece no Candomblé, onde homens dançam lado a lado com seus orixás.
Mas não deixemos também de olhar para o real, não se pode esquecer-se de ver e viver a vida e só nos preocuparmos com o transcendente. O que temos feito sobre as subidas dos oceanos, só rezado? – nos pergunta Carrière Claude, e ele afirma – É exercício de higiene mental o ato de não acreditar, pois a fé não remete senão a si própria – como se o ato de acreditar em não se ter fé, já não é em si uma crença. A fé em não se ter fé.
A grande feira onde os santos, deuses, entidades se exibem, ou são exibidos nas barracas religiosas, ou barracas das religiões. Um grande leilão da oferta e procura. Quem dá mais?
No campo da espiritualidade o conselho que recebemos é para que fujamos dela e nesse caso concordo em gênero, número e grau. A partir do momento em que pararmos de nos preocupar do por quê vivemos e começarmos a trabalhar o modo como isso acontece, o como vivemos, as coisas serão mais claras e objetivas, objetividade essa às vezes camuflada pelas religiões, como se quando tentamos ser práticos na vida nos tornamos hereges e renunciamos ao prazer sem conhecê-lo. Heresia essa que nos é embutida desde pequenos (dependendo é claro de nossa formação, alguns obviamente conseguem crescer livres desse tipo de constrangimento). Tudo nos remete ao inferno, inferno esse que existe, pois damos mais valor à vida após a morte do que a própria vida, então assim, deixamos de vivê-la como se deve. A vida do espírito, mas o corpo, enquanto estado físico e atuante se perde em meio a tantas distrações, aí sim, é claro, precisamos de ressurreições, reencarnações, como se nos prometessem a chance de concertar tudo num futuro, numa outra vida, outra dimensão. Mas isso nos dá o direito de estragar tudo na vida atual?
Na grande roda da vida, os deuses viram frutos do nosso ventre. São agora nossos filhos, proibidos de erro, de humanidade. Assim como o filho que briga com os pais por causa da criação, porém quando cria seus próprios filhos, acaba por repetir os mesmos erros que antes criticava.
(Texto: Bruno Souza)